segunda-feira, 15 de junho de 2009

Teoria da Lírica: Ninguém = Ninguém

Tenho (tive) uma birra histórica com os Engenheiros do Hawaii. Gostei muito (basicamente até o Gessinger, Licks & Maltz, de 93, com altos e baixos no caminho), depois passei a não gostar com força - até me ligar que não gostava mais por comodismo (é muito chato ter que defender um ponto de vista toda vez que vc o expõe) do que por questões pessoais mesmo. E revi muita coisa que acabei perdendo; passei a gostar sem problemas, ou sem me importar se seria achincalhado ou não (basicamente passei pela mesma coisa com a Legião Urbana, mas isso fica pra outro post). E vi que achava certas coisas cretinas por ser EU o cretino, não a banda. Exemplo: esta música que posto agora. Quando ele falava que todos eram iguais, mas uns eram mais iguais que os outros, "Revolução dos Bichos" era mais um nome de um musical da Globo do que literatura. George Orwell era o de 1984, aquele que falava do "Grande Irmão", etc, etc. Logo, quando li o livro, a letra fez um sentido tremendo - embora ainda fosse resistente a banda. E a postura "tô cagando pra isso" do Humberto Gessinger me fez MESMO dar mais valor. Porque era muito fácil o cara ter virado figurinha carimbada mainstream. Em vez disso continua escrevendo suas músicas. Goste-se ou não, não tem como negar: O (grupo) Engenheiros do Hawaii, e o Humberto Gessinger em particular, são dos artistas mais nem aí do rock nacional. Livre pra lançar disco quando quiser, livre pra abrir concessão e gravar um Acústico MTV - do jeito que quiser, com o repertório que quiser. E é isso. Vamos à música, então.

Ninguém = Ninguém
Engenheiros do Hawaii
Composição: Humberto Gessinger

Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Ou seja: tem pra todo mundo. Tantos quadros para serem vistos, de tantas formas possíveis...

Há tanta gente pelas ruas
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
Cada rua, cada bairro, cada "quebrada" com aquilo que tem de bom e ruim - que é o que, no fim das contas, a torna única. Então não faz sentido discutir qual, quem, o quê ou onde é melhor: "nenhuma rua é igual a outra" - depende de como você está, pra ser bom ou ruim.

Ninguém = ninguém
Me encanta que tanta gente sinta
(se é que sente) a mesma indiferença
A indiferença perturba, incomoda. A indiferença é tão marcante que Gessinger ainda reforça, semanticamente e foneticamente com a aliteração SINta (SE é que SENte). Afinal, já que é indiferença, provavelmente as pessoas nem sintam mesmo.

Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há palavras que nunca são ditas
Há muitas vozes repetindo a mesma frase:
Será que há palavras que nunca são ditas por haverem muitas vozes repetindo sempre a mesma frase?

Ninguém = ninguém
Me espanta que tanta gente minta
(descaradamente) a mesma mentira
Mesma jogada do quadro anterior. Aqui a ênfase se dá através de MINta descaradaMENte a MEsma MENtira. Não há pudor em mentir. O cenário narrado é triste: as pessoas são indiferentes e mentirosas: se escondem na diferença, pois "ninguém = ninguém"...

São todos iguais
E tão desiguais
uns mais iguais que os outros
Além da citação (fantástica, no contexto) de Orwell, as palavras formam como um jogo de espelhos: São iguais, porém desiguais - porque no fim das contas uns são MAIS iguais que os outros. Se uns são mais, outros são MENOS iguais - ou mais diferentes. Privilégio? Superioridade? O que é ser "diferente" num mundo onde a indiferença e a mentira reinam? Eles são exceção ou causa deste mundo podre?

Há pouca água e muita sede
Uma represa, um apartheid
O fato de haver POUCA água e MUITA sede (o contraste que reforça as imagens) é realçado pelo jogo de imagens: tanto a represa quanto o apartheid servem para SEPARAR - água ou pessoas.

(a vida seca, os olhos úmidos)
E já que se fala da represa, nada como citar o romance de Graciliano Ramos (Vidas Secas) como fonte de tristeza, que umedece os olhos - o que umedece os olhos numa vida seca, a não ser as lágrimas de tristeza? Tristeza esta EXATAMENTE por viver essa vida seca - de sentido, de alimento e de esperança. Este mundo indiferente e mentiroso produz este tipo de coisa.

Entre duas pessoas
Entre quatro paredes
Tudo fica claro
Ninguém fica indiferente
"Entre duas pessoas" e "entre quatro paredes" indicam situações que nos envolvem diretamente. E este é o único caso onde "ninguém fica indiferente". O que se pode inferir: as pessoas só se sensibilizam quando o problema é com elas. Ou seja: sentem "indiferença", "mentem descaradamente" - mas não ficam indiferentes "entre duas pessoas" ou "entre quatro paredes". Aí "tudo fica claro".

Ninguém = ninguém
Me assusta que justamente agora
Todo mundo (tanta gente)
tenha ido embora
"justamente agora", quando o autor chega a ponto de cantar o egoísmo das pessoas em alto e bom som, de esfregar na cara das pessoas essa crise de valores... "todo mundo (tanta gente)" foi embora!

(...)
O que me encanta é que tanta gente
Sinta (se é que sente) ou
Minta (desesperadamente)
Da mesma forma
É realmente encantador que um grande número de pessoas caia nesta armadilha de hipocrisia e egoísmo, e se negue a encarar os fatos - "da mesma forma", condicionados que são a viver sem questionar. E quando confrontados, "vão embora". Como o menino que leva a bola embora por não ter sido escolhido para o time principal.

O engraçado é que a letra começa com uma abordagem e viaja para outra bem diferente. Se é proposital ou não, não sei dizer - não a escrevi. Claro, uma análise é, antes de tudo, uma opinião - ou ainda: uma interpretação. O próprio autor pode negar cada palavra do que disse aqui, ainda que isso provavelmente não altere nada do que escrevi. And that's all, folks.

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11 Comentários:

Às 15 de junho de 2009 às 16:44 , Anonymous Carlos disse...

Na boa, nao so chegado em engenheiros do havai nao. mas a analise é interessante, fez eu ver essa musica de forma diferente.

 
Às 22 de junho de 2009 às 03:57 , Blogger Marie Tourvel disse...

Acontece comigo. Sempre tive um pouco de preconceitozinho, sabe? Mas gostei da sua análise pra música. E eu gosto da Infinita Highway... Guilty pleasure total. :))))))))))))

 
Às 2 de fevereiro de 2013 às 11:03 , Blogger Carlos disse...

Cara, esse post é antigo e nem sei se o blog ainda está ativo mas achei que deveria comentar (talvez por curtir Engenheiros). Quando ele diz "Há tanta gente pelas ruas.
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra." ou "Ninguém = ninguém.
Me encanta que tanta gente sinta
(se é que sente) a mesma indiferença" e principalmente a parte "Há palavras que nunca são ditas.
Há muitas vozes repetindo a mesma frase", na minha visão, é uma referencia direta a 1984. Afinal de contas, de fato aquele Estado distópico que é discretório no livro não dava margem nenhuma pra ninguém pensar por conta própria. Eram todos manipulados, obrigados a agira daquela maneira. "Há palavras que nunca são ditas. --> "Há muitas vozes repetindo a mesma frase"

Sei lá... foi a forma como eu encarei a letra.

 
Às 22 de janeiro de 2014 às 07:05 , Anonymous Anônimo disse...

Bom, já que tem um comentário de 2013, vou dar um up pra 2014. Essa música fala da mesma coisa que Roger Waters fala em another brick in the wall, só que de maneira diferente e em ambientes completamente diferentes.

 
Às 8 de agosto de 2014 às 21:31 , Blogger João Domingos disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
Às 8 de agosto de 2014 às 21:34 , Blogger João Domingos disse...

Sinceramente vejo uma critica severa à sociedade capitalista autofágica e indiferente às desigualdades existentes. Desigualdades promovidas pelo Capital, pelo espírito do consumismo, pelo valor do "Ter" e a desvalorização do "Ser". Se na Constituição brasileira somos todos iguais, na prática isto não acontece; dai a frase com ênfase
" São todos iguais
E tão desiguais
Uns mais iguais que os outros"; ou seja, numa sociedade onde O Capital dar as cartas o que predomina é a mentira e a indiferença frente às desigualdade existentes e a manutenção dos preconceitos contra os desiguais como : As mulheres, os negros, os pobres.Dai a separação, o Apartheid existente em nossa sociedade, bem longe ao meu ver do livro de George Orwell 1984 que é uma critica às sociedades totalitárias sejam, de direta ou esquerdas, conservadoras ou revolucionárias.

 
Às 21 de agosto de 2014 às 11:05 , Anonymous Anônimo disse...

Cara estou um pouco na duvida da visão politica do autor, mas percebi bem a do rapas do comentário anterior... hj em dia alguém culpar o capitalismo pelas desigualdades do mundo é coisa de criança, idiota util, ou cínico msm, não te deixo menos pobre por enriquecer, mercado não é um jogo de soma zero, e se pensa diferente não entendeu nada de como o mercado funciona. capitalismo é um sistema econômico que te obriga a ser altruísta, não acredita? tente vender um produto sem agradar o comprador, uma empresa só existe para atender um mercado, que nada mais é que um grupo de pessoas que quer alguma coisa, já em um sistema socialista, pode somente vender ao preço definido por quem está no poder, e ngm compra o que quer, somente o que precisa, isso quando consegue(vemos exemplos como cuba, china antes de abrir o mercado, coreia do norte, a união sovietica) onde morreram milhares por fome, ou oposição aos mais iguais que se auto denominando porta vozes da sociedade fantasiosa perfeita, esmagaram como insetos pessoas de uma sociedade dita por eles "injusta", ninguém é igual a ninguem, nem nunca será, em um sistema democrático, garantimos as liberdades individuais, onde cada pessoa pode viver com igualdade de oportunidades, mas é obvio que isso é teoria, sempre teremos desigualdades, mesmo assim ngm morre fuzilado por isso. assim o capitalismo + republica democratica, não é o regime mais justo, e sim o menos injusto e sangrento, pois te respeita como individuo desigual, porem coloca regras no jogo para não termos alguns privilegiados, ou seja, o grupinho mais igual que os outros.

 
Às 9 de outubro de 2014 às 07:31 , Anonymous Anônimo disse...

Vc só pode fazer parte desse "grupinho mais igual que os outros", pra vir aqui dizer que o capitalismo obriga a pessoa a ser altruísta. Até pq o altruísmo é um sentimento que nasce espontaneamente e não por imposição de um sistema.

 
Às 26 de março de 2019 às 20:43 , Blogger Madarão disse...

Incrível, não sei a quanto tempo atras essa matéria foi lançada, mas como essa música se encaixa perfeitamente nos dias de hoje.
ESTOU SIMPLESMENTE APAIXONADO POR ESTA BANDA.

27/03/2019. 00:43 AM

 
Às 25 de novembro de 2019 às 15:58 , Anonymous Felipe disse...

To vendo que tem muitas pessoas discordando da visão analítica do Rodrigo Rover mas!!!
Há tantos quadros na parede.
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro.
Como essa letra não seria deferente a cada capitulo da nossa historia (brasileira) passamos por transformações o eu de 2009 quando o Rover escreveu essa critica analítica não e o mesmo da agora 2019 dez anos muda muita coisa e muitas das coisa que engenheiros falam em suas musica sempre serão atuais nota para ''toda forma de poder''.

 
Às 10 de dezembro de 2019 às 05:10 , Anonymous Guilherme Polinski disse...

Galera, o cara é um baita FDP de um baita compositor, músicas e músicos foda pra c... em todas formações e vcs vem de, "ai não gosto", "ai preconceitozinho", tudo bem, mas escutem de novo!

 

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